sábado, 21 de março de 2009

Dia Mundial da Poesia

Mensagem de Koichiro Matsuura, Director General da UNESCO, por ocasião do Dia Mundial da Poesia, 21 de Março de 2009

 

A diversidade linguística é uma das formas mais valiosas que a diversidade cultural pode assumir. Graças ao facto de serem capazes de captar a infinita variedade do mundo e se prestarem à tradução, as línguas podem articular a singularidade e a universalidade. Este vínculo manifesta-se com máxima intensidade na poesia. Qualquer língua tem a sua.

Mediante a celebração deste Dia Mundial podemos voltar ao espírito da mensagem de encerramento da Convenção sobre a protecção e a promoção da diversidade das expressões culturais (2005), que considera a diversidade cultural como um processo evolutivo de expressão e criação.

A poesia contribui para esta diversidade criativa ao questionar, de maneira sempre renovada, o modo como usamos as palavras e as coisas, as nossas maneiras de perceber e interpretar a realidade.

Devido às suas associações e metáforas, e à sua gramática singular, a linguagem poética constitui, pois, outra faceta possível do diálogo entre as culturas.

Diversidade no diálogo, livre circulação das ideias por meio da palavra, criatividade e inovação: é evidente que o Dia Mundial da Poesia é também um convite a reflectir sobre o poder da linguagem e o florescimento das capacidades criadoras de cada pessoa.

Agora que acabamos de encerrar as celebrações do 60.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esperemos que este Dia Mundial também dê testemunho da aspiração universal a um mundo reconciliado em torno dos valores da liberdade e da diversidade.

Koichiro Matsuura

(tradução de José António Gomes)

 

«Cada poema es único. En cada obra late, con mayor o menor grado, toda la poesía. Cada lector busca algo en el poema. Y no es insólito que lo encuentre: ya lo llevaba dentro.» (Octavio Paz)

«O homem surdo à voz da poesia é um bárbaro, seja quem for.» (Goethe)

«La poesía no quiere adeptos, quiere amantes.» (Federico García Lorca)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Por uma pedagogia poética: A Poesia como Estratégia, de José António Franco

Contista e poeta, divulgador de poesia e dinamizador de oficinas de escrita, além de professor, José António Franco escolheu para si aquele destino de trevas e claridade que é a poesia, o qual, entre muitas outras «definições» a considerar, poderia ser descrito do seguinte modo: «A poesia representa um caminho a que, geralmente, os homens não querem renunciar. O pensamento analógico e simbólico de que se alimenta, a sedução das formas sensíveis e espirituais do imaginário, a revelação intuitiva do saber, a confrontação com o próprio sistema da linguagem serão as linhas fundamentais que permitem traçar o perfil do que a poesia é essencialmente. Um rosto difícil, porque traz consigo o segredo essencial de não pertencer a ninguém. Mas o espaço que se forma a partir de tal ausência não acaba por irrealizar a poesia. É nesta ambiguidade que assenta um dos seus poderes, o qual muitos não lhe reconhecem: o de ser uma forma de conhecimento.» (Guimarães, 1987).

Escritas em 1987 por Fernando Guimarães, estas palavras talvez permitam compreender o poder de atracção da poesia, na origem, por certo, de obras como a que se apresenta – A Poesia como Estratégia, editada pela Campo das Letras, em 1999 – ou de poemas como o que o seu autor, José António Franco, publicou em 1993: «faço de mim um corpo novo / rebelo-me contra a / clausura // uma qualquer forma viva / um rio de imortalidade / de inocência» (Franco, 1993: 41).

José António Franco escolheu para este livro o título certo, porque em parte nos esclarece desde logo acerca quer dos seus pressupostos quer dos propósitos que o animam. Não pretende o autor enunciar de modo sistemático os princípios e os objectivos de uma didáctica da poesia no contexto dos programas em vigor, em especial os respeitantes a níveis escolares em que o estudo do texto poético se processa com maior sistematicidade, ou seja, entre o 9º e o 12º anos de escolaridade. É certo que as aprendizagens relativas à poesia se encontram contempladas de forma insuficiente – como sublinha José António Franco – nos documentos programáticos do Ensino Básico (1º, 2º e 3º ciclos), e deve reconhecer-se que é entre o 9º ano e o final do Ensino Secundário que a poesia surge como um dos núcleos relevantes dos programas de Língua Portuguesa. Ora, como se disse, não tem o autor como finalidade discutir problemas relativos ao ensino da poesia enquanto conteúdo concreto, no quadro de uma didáctica do texto literário. O seu propósito é, sim, o de nos convencer de que a poesia, sobretudo nos níveis iniciais de escolaridade (1º ciclo, 2º…), deve ocupar lugar central num processo de reconciliação das crianças e dos jovens com a aprendizagem da escrita, da leitura e da expressão oral.

Assim, mais que um mero conteúdo, pode a poesia constituir, na perspectiva de José António Franco, um recurso e, nessa medida, fazer parte de uma estratégia pedagógica, encarada como «exercício do magistério da sensibilidade» (p. 4), que tenha em vista a educação global do indivíduo. Para o autor, a poesia reúne em si todos os ingredientes necessários para se tornar «um auxiliar precioso do pedagogo», no sentido em que a sua leitura e as práticas de escrita que a assumem como matriz são terreno ideal para o desenvolvimento da «competência comunicativa» e de «uma saudável relação com o mundo» (p. 17). Pretende-se ainda que o convívio com a poesia em contexto escolar resulte, para a criança e o jovem, numa «recuperação da funcionalidade afectiva da língua portuguesa», no quadro de uma «pedagogia estética que privilegi[e] a palavra e o texto poético, a caminho da (…) reconciliação da escola (…) com a palavra, a criatividade e o espírito crítico» (v. texto da badana).

O autor de A Poesia como Estratégia poderia assim subscrever o discurso de alguns mestres cujos textos constituem o esteio teórico do seu trabalho. Entre eles Mikel Dufrenne, Georges Mounin, Georges Jean, Gianni Rodari, Michel Cosem ou Jacinto do Prado Coelho que, em 1944, escrevia estas palavras que igualmente poderiam ser assumidas por José António Franco: «o fito do educador será formar artistas, quer dizer, homens amplamente humanos, que amem a vida, que a vejam no que tem de essencial. (…) Toda a educação deverá ser poética.» (Coelho, 1944: 19-21).

É evidente que esta defesa de uma «educação poética», para utilizar a expressão do ensaísta de Ao contrário de Penélope, não poderia deixar de pressupor uma atitude crítica em relação à Escola que temos, aos seus métodos e práticas e àqueles que são os principais agentes de tais processos, ou seja os professores. Ressalvando as excepções, Franco acusa-os de uma quase geral indisponibilidade para o exercício do já referido «magistério da sensibilidade – com repercussões evidentes na relação das crianças com as artes, em geral, e a poesia, em particular», acrescentando que eles se socorrem muitas vezes «de um academismo palavroso e absurdo, em que se fala mais sobre a língua do que se aprende realmente a conhecê-la e a manuseá-la» (p. 43). (Convenhamos, contudo, que o próprio Ministério da Educação tem favorecido, ao longo dos anos, uma evacuação, sem precedentes, das Humanidades e das Artes do ensino.)

Esta crítica não surge, contudo, descontextualizada, e as primeiras cinquenta páginas do livro confirmam-no sobremaneira, porquanto, num discurso com aquela dose de subjectividade de quem muito meditou já sobre o mundo, o autor traça uma imagem negra da sociedade contemporânea, que, na sua óptica, teria gerado um clima altamente desfavorável à formação do gosto e da sensibilidade, e a uma educação pela arte, designadamente em contexto escolar. Não se surpreenda, por isso, o leitor com as críticas radicais à uniformização «cultural» imposta pelo neo-liberalismo, ao consumismo, à incultura e à vociferação televisivas, à boçalidade quase generalizada que o discurso dos media evidencia, à desumanização e à crise de valores que caracterizam este tempo – aspectos escalpelizados por José António Franco, que, em jeito de conclusão, desemboca numa apaixonada defesa do imprescindível papel da poesia no mundo de hoje. Afirma, assim, que a ausência de poesia – encarada aqui num sentido amplo do termo que extravasa a sua dimensão estritamente literária – «pode levar ao tédio e escancarar as portas a todo o tipo de agressões intelectuais e emocionais que já referi: dos media à publicidade, da crise de valores duma sociedade em mudança vertiginosa ao próprio sistema de ensino. E, aqui, já não se trata, exclusivamente, da simples capacidade de ler, ouvir ou escrever poesia: trata-se da capacidade de reflectir e de sonhar, da arte de sobreviver atenta e lucidamente, da procura consciente e decidida da felicidade num ambiente humanizado e digno, em que os bens materiais não sejam o objectivo supremo da existência» (p. 53).

Traçado o diagnóstico, José António Franco enuncia as virtualidades do convívio com a poesia na Escola e na aula. Traduzo algumas delas por palavras minhas: conhecimento e interiorização de referências culturais e literárias; desenvolvimento da sociabilidade e de um sentido existencial de cunho humanista; educação do olhar; melhoria de competências de comunicação e expressão; descoberta do potencial lúdico da linguagem verbal; superação de uma visão redutora, meramente utilitária, dos usos da língua; formação do gosto estético e de uma atitude de abertura às mais diversas manifestações artísticas.

Gostaria, neste ponto, de realçar o humanismo da visão que José António Franco propõe da relação pedagógica e da Escola enquanto comunidade. Este sentido humanista, indissociável de uma atitude de certa irreverência lúdica, perpassa os capítulos ou subcapítulos sobre o ambiente a criar na turma, o modo de educar no sentido de uma atenção ao mundo, as modalidades de contacto com o texto poético, os aspectos relativos ao aperfeiçoamento da leitura oral, da articulação e da dicção. Essas e outras passagens – em que o autor põe à disposição dos agentes educativos um conjunto de conselhos práticos, úteis e sensatos, sobre aquilo a que, com Georges Jean, poderíamos chamar a «entrada» na poesia –, tais passagens, dizia, assentam numa experiência de anos devotada à realização de oficinas poéticas de leitura e escrita em escolas do Ensino Básico. E também aqui ressalta a atitude humanista a que aludi, pois muitas das actividades sugeridas são enquadradas por referências a contextos situacionais concretos em que a sua aplicação teve lugar, não se escamoteando, por vezes, o tipo de reacções que as propostas provocaram junto de crianças e jovens, alguns deles com dificuldades de integração ou de aprendizagem.

As últimas sessenta e oito páginas da obra sugerem um elenco de actividades essencialmente centradas na escrita, na expressão oral e, sobretudo, numa descoberta activa dos «mistérios» e dos «possíveis», por assim dizer, da linguagem verbal, em situações de uso poético ou poético-narrativo. Especialmente úteis a educadores e a animadores de oficinas de escrita e expressão oral, essas sugestões são por vezes devedoras dos contributos dados pelos próprios artistas da palavra, sejam eles os poetas – surrealistas e outros – ou os inventores de histórias à Gianni Rodari, o grande escritor italiano da literatura para a infância que nos legou esse pequeno tratado sobre a arte de contar histórias que é a Gramática da Fantasia. O «cadáver esquisito», o acróstico, a escrita a partir de «rimas infantis» e provérbios são apenas três das vinte e oito técnicas, jogos poéticos ou narrativos, e outros procedimentos sugeridos por José António Franco para «perder o medo à poesia» na Escola e aceitar os desafios à criatividade que a própria linguagem encerra.

Para concluir, e pensando melhor, talvez se entenda a razão por que muitos professores sentem esse medo à poesia de que tanto fala o autor. É que a poesia, como escreveu Octavio Paz [1970], é «pão dos eleitos» e «alimento maldito»; «pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, colectiva e pessoal, desnuda e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todos os rostos, mas há quem afirme que não possui nenhum». Encerrando em si mesma tanta contradição, sendo a um tempo luz e trevas, tudo e nada, útil e inútil, compreende-se, repito, que infunda receios. Mas, também por esse motivo, guarda em si um infinito poder de sedução. Apenas se exige, por isso, que o professor se não furte à luminosa intensidade do seu olhar, inscrita em cada palavra, em cada metáfora, em cada verso. Aceite o desafio, descobrir-se-á então o indizível prazer da vertigem. Essa vertigem de que fala, afinal, um outro poema de José António Franco com o qual termino: «por dentro das palavras / há duendes e nuvens verdes / espinhos desmaiados / um rio às vezes / sem margens nem pontes / nem vontade de parar» (Franco, 1993: 59).

 

Referências bibliográficas

 

FRANCO, José António (1993). paisagem sem noite. Coimbra: Liv. Minerva.

FRANCO, José António (1999). A Poesia como Estratégia. Porto: Campo das Letras.

GUIMARÃES, Fernando (1987). «A poesia é uma forma de conhecimento», JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, 2 de Março.

COELHO, Jacinto do Prado (1944). A Educação do Sentimento Poético. Coimbra: Coimbra Editora.

PAZ, Octavio [1970?]. «A poesia é conhecimento…», in Mourão-Ferreira, David. Imagens da Poesia Europeia. Lisboa: [Pórtico] Artis.

 

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

sábado, 7 de março de 2009

Até amanhã, Camaradas, de Manuel Tiago

Quantas obras, esteticamente mais conseguidas, poderiam ocupar o lugar desta? Inúmeras, sem dúvida. Mas este é um livro com o condão de emocionar e abalar consciências, fazer ruir preconceitos e ideias feitas, revelar o que de mais humano resistiu no percurso dos que ousaram trocar uma existência «normal» pelo duro quotidiano de uma vida clandestina. Falo do combate ao fascismo, nos seus anos mais negros (década de 40), da luta pela liberdade e pelos direitos dos deserdados, neste caso os operários agrícolas e industriais do Alentejo e Vale do Tejo. De narração viva e empolgante, trazendo à memória o filme 1900 de Bertolucci, e com inesquecíveis ilustrações de um grande pintor, Rogério Ribeiro, é um dos romances mais representativos do neo-realismo português, apesar de publicado décadas depois do zénite desta corrente (anos 40-60). Transcende contudo os limites de escola, sobretudo pela elaboração psicológica de algumas personagens inesquecíveis: os clandestinos Vaz, Paulo, Ramos, Maria, Manuel Rato e tantos outros – faces visíveis, neste livro, da gesta antifascista do Partido Comunista Português, contada por Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal.

Ficha bibliográfica 

Manuel Tiago, Até amanhã, camaradas

9ª edição, ilustrada e cartonada

Ilustrações de Rogério Ribeiro e prefácio de Óscar Lopes 

colecção Resistência, 2004

 

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 1 de março de 2009

Humor das Multidões, de BAP (Augusto Baptista)

Uma das formas privilegiadas de expressão do humor é o cartoon. Indissociável do seu suporte de eleição, o periódico, surge nobilitada, aqui, pela inclusão em livro.

Pseudónimo (ou máscara?) de Augusto Baptista – fotógrafo, desenhador e escritor (publicou umas corrosivas Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias, entre outras obras) –, BAP é, por assim dizer, um típico nome de cartoonista (confirme-se, assim, a importância e as conotações da marca autoral), com o qual surgem assinadas estas vinhetas de página inteira que dão pelo título de Humor das Multidões (Chãos Velhos, 2000), constituídas por uma mesma imagem que, obsessivamente repetida do princípio ao fim do livro, representa uma imensa multidão, compacta como uma floresta.

Dessa multidão emergem balões de fala (único elemento que se altera de página para página), geralmente um ou dois, que representam situações quotidianas, ou antes, interacções verbais – por vezes também solilóquios brevíssimos – cujo absurdo nasce quase sempre do preciso contexto em que surgem, ou seja, no meio de uma multidão inexpugnável de cabeças e corpos em exasperante aperto. Alguns exemplos dessas verbalizações: «– Perdeu alguma coisa? / – A lente de contacto…»; « Desculpe, a bicha começa onde?»; « É para o 1º Cartório? / – Não! É para o 2º!»; «Alguém me troca mil?» e, na outra ponta da compacta massa de gente, a quase insólita resposta, de quase impossível dimensão perlocutória: «Serve em duas de quinhentos?»

Até pela impossibilidade de reproduzir a imagem (sem a qual o texto linguístico perde grande parte do sentido), não se torna fácil resumir ou sequer tentar reproduzir o irreproduzível: a graça, a exposição do ridículo, o sentido crítico à flor dos dedos do humorista. Por isso, apenas se regista um apelo: que este imperdível Humor das Multidões – que nos arrancou sorrisos e algumas gargalhadas – tenha continuidade, noutros exemplos da oficina humorística de BAP.

Assinale-se que o autor, Augusto Baptista, nasceu em Oliveira de Azeméis. A sua criação, como se disse, reparte-se pela escrita, pelo desenho e pela fotografia. Eis a relação dos seus títulos editados em livro: Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias (Campo das Letras, 2000) e, com Francisco Duarte Mangas, O Medo Não Podia Ter Tudo (Campo das Letras, 1999; editado em Itália com o título La Paura Non Poteva Vincere, NonSoloParole, 2006). No âmbito do ensaio, publicou Floripes negra (Cena Lusófona, 2001).

 

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)