domingo, 27 de fevereiro de 2011

José Régio – um par de memórias: crónica

Tinha treze anos quando a notícia da morte de José Régio chegou aos meus ouvidos. Frequentava o então 4.º ano do Liceu de Alexandre Herculano, no Porto, e os meus interesses escolares centravam-se na disciplina de Português. Leccionava-a (estávamos em 1969) Lucinda Araújo – poetisa estimável 1, o que só viria a saber mais tarde. (Não resisto a um parêntesis para recordar que, pela primeira vez no meu percurso de estudante, tivera a sorte de um professor aconselhar, para eventual leitura de férias, uma lista de romances e contos de autores portugueses. Em alguns dos adolescentes que então éramos, este conselho foi semente que deu fruto. A Lucinda Araújo o devemos.)

Desde muito cedo a leitura me ajudara a preencher os tempos livres. Mas a 8.ª edição da Selecta Literária (1968) organizada por Júlio Martins e Jaime da Mota, publicada pela Didáctica Editora e adoptada como manual de leitura para os então 4.º e 5.º anos do liceu, não oferecia apenas textos dos grandes autores do passado. Pela primeira vez, abriam-se-nos as portas da modernidade, já que a selecta dava a ler também textos de Pascoaes, Pessoa, Sá-Carneiro, Régio, Aquilino, Torga, Sebastião da Gama e outros. Cada nota biográfica vinha acompanhada de um rosto – e os olhos de Régio interpelavam-nos, olhando-nos fixamente por trás das lentes dos seus óculos de aros grossos.

Nesse mesmo ano — em que simultaneamente começara a interessar-me por música, por política e a trocar versos com amigos –, lembro-me da intensa impressão provocada pela leitura da «Balada de Coimbra» (do livro Fado) e do poema «Nossa Senhora» (de Mas Deus é Grande). E também de ter deparado, um par de vezes, com a figura de Régio na televisão. Seduzia-me, nessa altura, a coloquialidade de alguns dos seus decassílabos, tão diversa da pompa neo-clássica a que me tinham habituado alguns setecentistas lidos pouco tempo antes: «Tenho ao cimo da escada, de maneira / que logo, entrando, os olhos me dão nela, / uma Nossa Senhora de madeira / arrancada a um Calvário de capela.» (Júlio Martins e Jaime da Mota, op. cit., p. 421).

Quando enfim dispus de um magro pecúlio para adquirir, por minha livre inciativa e escolha, literatura «a sério», e desse modo começar uma verdadeira biblioteca de romances e poesia, vi-me na contingência de escolher dois dos livros menos caros que então encontrei na livraria. A minha opção recaiu em Eça (A Cidade e as Serras) e no menos volumoso livro de poemas que então descobri entre as obras de Régio – esse poeta de rosto conhecido, cujo falecimento, noticiado meses atrás, deixara pesarosa a minha adolescência. Guardo religiosamente esse pequeno volume – a 2.ª edição de Filho do Homem (1.ª ed., 1961; 2.ª, Portugália, 1970) –, pois com ele dei início à minha colecção de livros de poesia. E a bela e estranha ave que João da Câmara Leme desenhara para a capa conquistou para sempre um poiso na minha memória.

Cada poema era precedido do nome do ciclo em que se inseria, dando assim a conhecer, desde logo, alguns dos tópicos recorrentes da poética regiana: Deus e o Homem («O Pólo Sumo»), o amor, o erotismo e a morte («O Amor e a Morte» e «Os Epitáfios»). Mais do que todos, me fascinavam porém os poemas do «Cancioneiro de João Bensaúde» – onde alguns terão querido ler uma manifestação heteronímica, semelhante às do poeta que Régio trouxera para as luzes da ribalta literária, nos primeiros números da presença: Fernando Pessoa 2.

Com aquela ousadia (e sua ponta de irresponsabilidade) de quem não é assíduo frequentador do autor de A Chaga do Lado, direi que João Bensaúde se me afigura antes como um sujeito lírico peculiar na poesia de Régio — aquele que lhe permitia cultivar uma certa «simplicidade» e leveza de expressão (alguns críticos achá-la-iam problemática), por vezes uma construída ingenuidade de vagas ressonâncias caeirianas. Pensando nas gerações mais jovens, encontro hoje, nesses traços, uma das possíveis portas de entrada no universo poético de José Régio: «Meus versos que afinal sois naturais / Como as rosas, os montes, as nascentes, / De que abismos chegais? / Desceis de que vertentes? // (…) Sou eu que vos componho, ou vós que me criais, / Meus versos hoje nus e secos, / Meus versos que afinal sois naturais, / – Rosas e estrume, águas e lodo, montes, ecos…?» (Filho do Homem, ed. cit, pp. 82-83).

Fugiria, por outro lado, à verdade se dissesse que a minha adolescência ficara indiferente ao poderoso erotismo que se desprende dos poemas do ciclo «O Amor e a Morte» (e, em geral, de muita da grande poesia de Régio). Na realidade, a beleza (e sensualidade) de alguns destes versos não mais me abandonaram: «A mulher que eu amo, que impressão me faz! / De cabelos rasos, parece um rapaz. (…) Com seu riso aéreo nos lábios vermelhos, / Ela, então, recebe-me, entre os nus joelhos, / Sobre o longo corpo inteiramente franco… / E os seus olhos mortos boiam só em branco.» (Filho do Homem, p. 10).

Que dizer por outro lado das glosas do tema do poeta morto que «Os Epitáfios», entre o terno e o amargo, nos propõem: «As asas não lhe cabem no caixão! / A farpela de luto não condiz / Com seu ar grave, mas, enfim, feliz; / A gravata e o calçado também não. (…) Não vêem que ele, nu, faz mais figura, / Como uma pedra ou uma estrela? / Pois atirem-nos assim à terra dura, / Ser-lhe-á conforto: / Deixem-no respirar ao menos morto!» (Filho do Homem, p. 20).

A plasticidade destes versos, a frescura e coloquialidade de muitos deles, o torturado mas fino olhar poético que revelam ainda hoje surpreendem. Razões de sobra para regressar a esta poesia e a Filho do Homem – pequeno grande livro que ainda guarda, nas suas páginas amarelecidas, o rasto de um deslumbrado olhar adolescente. O meu – aqui lembrado em honra e louvor de José Régio, arrebatado pela morte no ano em que, pela mão dos seus versos, me iniciei na palavra dos poetas.

Notas

1 Lucinda Araújo publicou Nunca mais Amanhece – Poesia (Porto: [Inova imp.], 1968), O Sabor das Amoras – Poesia 2 (Vila Nova de Gaia: [Tipografia Rocha], 1973) e Calendário Egípcio – Poesia 3 (Porto: Figueirinhas, 1985). Sobre Calendário Egípcio, leia-se Luísa Dacosta (1992). Na Água do Tempo. Lisboa: Quimera, pp. 334-336.

2 Sobre esta questão, leia-se, por exemplo, «João Bensaúde: heterónimo ou alter-ego de José Régio», de Albano Martins, texto incluído no seu livro A Letras e as Tintas (Famalicão: Quasi, 2006), pp. 9-12.

José António Gomes

(NELA - Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A Maresia e o Sargaço dos Dias, de Luísa Dacosta

Comum às crónicas de A-Ver-o-Mar (Porto: Figueirinhas, 1981) e aos poemas de A Maresia e o Sargaço dos Dias (Porto: ASA, 2002, col. “Pequeno formato”), de Luísa Dacosta, é a presença obsidiante do mar e da praia. Estes funcionam como o universo do qual emergem a matéria verbal e os processos estilístico-retóricos dos poemas, mas sobretudo como mapa pessoal no qual se foram inscrevendo lugares de uma geografia íntima, como a mitificada aldeia de A-Ver-O-Mar, matriz de figurações míticas construídas pela própria Autora.

Nas crónicas, é recorrente a cena das mulheres-Penélopes esperando os seus homens embarcados, espelho da situação do “eu” retomado em A Maresia e o Sargaço dos Dias. Por isso essas mulheres marcam também presença nos poemas, que permitem por outro lado ler referências à dura faina dos sargaceiros. Até porque Luísa Dacosta conheceu por dentro esta comunidade cujo declínio, em tom de despedida, é evocado no prefácio. Mas esta poesia configura sobretudo um discurso de amor naufragado que deixa perceber a sua genealogia literária: as vozes femininas das marinhas galaico-portuguesas e do cancioneiro popular. Uma escrita que se reinventa para lembrar e ser lembrada, a fim de que a memória da que escreve vença o tempo, um pouco à semelhança do sujeito feminino do poema “Entalhe” (p. 70) que logrou transformar em “lembrança viva” a sua própria imagem pretérita: “Era uma lembrança viva. / Mas a realidade tinha passado, / como um barco, ao deixar para trás / a linha do horizonte.(…)” (p. 70).

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)